Após 10 dias de trabalho e quase nove anos depois da tragédia, terminou no final da tarde desta sexta-feira (10), no Foro Central de Porto Alegre, o júri do caso da Boate Kiss. Os quatro réus foram condenados pelo incêndio da casa noturna de Santa Maria, em 27 de janeiro de 2013, que causou a morte de 242 pessoas e feriu outras 636.
O Conselho de Sentença do Tribunal do Júri condenou os réus às seguintes penas:
Durante a leitura da sentença, que durou cerca de 24 minutos, o juiz Orlando Faccini Neto mencionou a dor das famílias das vítimas e destacou que a dor da perda de um pai ou de uma mãe não deve ser naturalizada.
"Os dados do processo indicam, sem qualquer margem para dúvida, a presença de intenso sofrimento, decorrente das razões pelas quais morreram as vítimas. Quem, num exercício altruísta, por um minuto apenas buscar colocar-se no ambiente dos fatos, haverá de imaginar o desespero, a dor e o padecimento das pessoas que, na luta por sua sobrevivência, recebiam, todavia, a falta e a ausência de ar, os gritos e a escuridão, em termo tão singulares que não seria demasiado qualificar-se tudo o que ali foi experimentado ao modo como assentado pela literatura, 'o horror, o horror'", refletiu o Juiz.
O juiz determinou que os quatro cumprissem as penas em regime fechado e que saíssem do foro sem algemas. No entanto, após a leitura da sentença, a defesa de Spohr apresentou um habeas corpus pedindo que o condenado não fosse preso. O documento foi aceito pelo juiz, que estendeu o benefício aos outros três condenados. Assim, nenhum deles foi preso.
Julgamento
Iniciado no dia 1º de dezembro, a previsão era de que o júri se estendesse por duas semanas. Mesmo terminando quase uma semana antes do esperado, o julgamento foi considerado o mais longo da história do Poder Judiciário do Rio Grande do Sul. Em denúncia feita pelo Ministério Público, os quatros réus respondiam pelo crime de homicídio simples com dolo eventual consumado, no caso dos 242 mortos, e tentando, em relação aos 636 feridos no incêndio.
Os sete jurados que compuseram o júri do caso foram escolhidos por meio de um sorteio feito no primeiro dia do julgamento. O Conselho de Sentença do Tribunal do Júri foi composto por seis homens e uma mulher. Chegaram a ser sorteadas sete mulheres, mas as demais foram recusadas pelas defesas. Os jurados selecionados ficaram isolados e incomunicáveis até o final do julgamento.
Do primeiro ao oitavo dia de julgamento, foram ouvidos 28 depoentes, sendo 12 vítimas, 13 testemunhas e três informantes. Os depoimentos foram arrolados pela defesa e também pela acusação. Inicialmente, seriam ouvidas 34 pessoas, mas cada parte abriu mão de oitivas para otimizar o tempo dos trabalhos. A defesa de Bonilha Leão foi a única que não indicou testemunhas.
Na segunda etapa do julgamento, onde os réus são interrogados, todos os quatro responderam apenas aos questionamentos do magistrado e de suas próprias defesas. O primeiro a falar foi Elissandro Spohr, o Kiko.
"Nós precisamos dizer que incendiar uma boate lotada de gente é crime de homicídio doloso, porque isso vai proteger daqui para frente os nosso filhos, eu não quero meu filho entrando numa boate para não sair. E isso só vai acontecer se a gente conseguir dizer para todos os proprietários de boates do Brasil: 'Cuidem dos seus frequentadores, cuidem das pessoas. As pessoas entraram, as pessoas precisam sair'", alegou o promotor Medina.
Após a explanação do Ministério Público, as defesas dos quatros réus dividiram as 2h30 que tinham para falar aos jurados, pronunciando-se por cerca de 40 minutos cada. O primeiro a se dirigir aos jurados foi o advogado Jader Marques, representando Spohr. "Não determinem a acusação deles por dolo eventual", pediu ele, alegando que seu cliente não assumiu o risco de produzir o resultado morte e nem mesmo o aceitava.
De acordo com ele, o empresário estava de acordo com as normas de funcionamento e que, por isso, se algo não estava correto no estabelecimento, a culpa é dos órgãos públicos que deram permissão para o local funcionar e que, por isso, tais órgãos também deveriam ser responsabilizados.
Todos os outros defensores, durante suas falas, também afirmaram que o banco de réus deveria estar ocupado por órgãos públicos. A advogada Tatiana Borsa, da defesa de Marcelo, pediu a absolvição do seu cliente por ausência de dolo. Ela afirmou que a intenção do músico não era matar qualquer pessoa e disse que o que aconteceu na boate "foi uma fatalidade".
Em seguida, dois advogados da defesa de Mauro Hoffmann, sócio da Boate Kiss, falaram aos jurados. Mário Cipriani e Bruno Seligman pediram aos jurados que absolvessem ou desclassificassem o crime, ou que reconhecessem a participação de menor importância do empresário. "Ele só é réu nesse processo porque acreditou no Ministério Público. O Mauro confiou no seu sócio administrador, que, por sua vez, confiou no engenheiro e nos órgãos públicos", falaram.
Por fim, a defesa do roadie da banda, Bonilha Leão, apresentou suas alegações ao Conselho de Sentença. Os advogados Jean de Menezes Severo, Gustavo da Costa Nagelstein e Antônio Prestes do Nascimento, que pediram a absolvição do, então, acusado. "Os principais culpados, que não estão aqui, um dia, sucumbirão", declarou Nascimento.
No início da fala, para simbolizar o banco de réus, eles colaram cartazes em uma cadeira junto à bancada em que estavam, com as palavras "Prefeitura", "Bombeiros", "alvará" e "MPRS". "Luciano é o boi de piranha, e o Ministério Público, a Prefeitura de Santa Maria e os Bombeiros são os lobos", afirmou Nagelstein. "Um roadie trabalhador, saiu de casa para ganhar a vida", ressaltou Severo.
Nesta sexta-feira foram réplicas e as tréplicas do debate. Durante a manhã, o Ministério Público e o Assistente de Acusação falaram novamente aos jurados durante duas horas. Na parte da tarde, as defesas também voltaram a fazer suas explanações ao júri, apresentando seus últimos argumentos. Após o final desta etapa, o juiz se reuniu em uma sala secreta com os jurados, onde a sentença foi definida.
Caso
Na noite de 27 de janeiro de 2013 era realizada uma festa universitária na Boate Kiss, em Santa Maria, na região central do Rio Grande do Sul. A banda Gurizada Fandangueira se apresentava quando um dos integrantes disparou um artefato pirotécnico que atingiu parte do teto que ficava em cima do palco, que era revestido de espuma. O incêndio tomou grandes proporções rapidamente, causou a morte de 242 pessoas e deixou mais de 600 feridos. As responsabilidades são apuradas em seis processos judiciais.
De acordo com o Ministério Público, os denunciados Elissandro, Mauro, Marcelo e Luciano assumiram o risco de produzir a morte das pessoas que estavam na Boate, pois, mesmo prevendo a possibilidade de matá-las em razão da falta de segurança, não tinham qualquer controle sobre o risco criado pelas diversas condições letais da cadeia causal.